sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

Capítulo 3 do livro EXISTENCIALISMO METAFÍSICO, A ÚLTIMA FILOSOFIA

 

3 – A Ordem Mitológica

 

 Os humanos primitivos sobreviviam à base de caça e frutos, chamados de caçadores e coletores. A base econômica simples deste homem arcaico não limitou seu pensamento e sua vida espiritual. Para eles, quase tudo tinha uma alma ou espírito, seja um rio, uma árvore, uma montanha, uma rocha. Igualmente a uma alma que anima um homem ou um animal, anima também entidades materiais. Antropólogos denominam estas crenças de animismo. Estas fés enquadram também crenças de antepassados mortos das tribos e vários seres espirituais. Em termo modernos, as tribos aborígenes e as indígenas brasileiras também têm tais crenças similares.

Entretanto, cada tribo tem sua própria crença. As tribos de todos os tempos e lugares transformaram o animismo numa crença universal. Estas crenças em entidades invisíveis sem matéria funcionam em qualquer tempo-espaço. Para nós, este mundo difere do mundo físico, pois não possuem matéria-tempo-espaço. Para nós, este mundo é metafísico. Para os animistas, não existe fronteira entre homens e o mundo metafísico. Plantas, dança, música, rituais servem de veículos de interação entre os mundos físicos e metafísicos. Apesar de cada tribo ter sua própria crença animista, todas as tribos tinham em comum o mundo físico em interação com o mundo metafísico.

Quando e como surgiram estas crenças animistas é incerto, mas parece haver uma relação com a linguagem. Alguns estudiosos defendem que a linguagem surgiu há poucas dezenas anos de milhares de anos com os sapiens. Diferentemente outros estudiosos pensam que a linguagem surgiu com a primeira espécie de homo, “erectus”, há mais de 1 milhão de anos. Para estes, o erectus inventou símbolos e linguagem. Para estes estudiosos, os sapiens apenas desenvolveram a linguagem. Percebe-se que não há consenso entre estudiosos, mas tanto as crenças como as linguagens ordenam a existência deles. Paralelamente a incerta origem destas crenças, não se sabe quando surgiu a linguagem, mas ela é também universal. Vale dizer, então, que não se sabe qual surgiu primeiro: a linguagem ou o animismo.

Linguagem evoluiu da comunicação e ela nos diferencia dos outros animais, pois todos animais se comunicam. A comunicação dos animais se restringe a alimentação, reprodução e sobrevivência no tempo-espaço presente. Uma presa produz um ruído para comunicar com seus pares a presença de um predador no tempo-espaço presente. Assim, os animais vivem presos no tempo-espaço presente. Eles não possuem o poder da linguagem que flexiona os verbos e avançam e retrocedem o tempo-espaço. Um animal não tem o poder de dizer: ontem, na beira do rio, eu cacei e degustei uma bela presa.

Como o animismo, a linguagem também é metafísica, pois não possuem matéria-tempo-espaço. Linguagem não é instinto, não é transmitida pela genética, não tem um órgão específico, mas é uma habilidade aprendida. Entretanto, a ciência e o senso comum estão tão acostumados com a matéria que acreditam que tudo é material. Além de comunicar, a linguagem promove a unificação social. Compartilhar informações como narrações, lendas, deuses promovem a socialização. O homem é um animal social. A cooperação social é vital para a sobrevivência e reprodução. Com o desenvolvimento das linguagens, as narrativas animistas transformaram em mitologias de tradição oral. Depois, algumas religiões apropriaram das mitologias e algumas edificaram igrejas em torno delas.

As mitologias têm uma verdade velada e caráter simbólico, mas não devem ser interpretadas literalmente. Deus criou o mundo, é verdade. Mas não em seis dias, pois não estaria limitado, como o homem, ao dia e a noite deste minúsculo orbe diante do universo imensurável. Foram catalogadas várias narrativas de criação do mundo de várias culturas, de vários povos e tribos. Assim, para uns a criação do mundo veio de um ovo, para outros de um milho, de um coco, de um gigante. Apesar do caráter simbólico, os mitos foram acomodados pelas religiões. Para o Ocidente, a criação do mundo veio da palavra do Criador. EM gosta de pensar que veio de um ato de vontade.

A linguagem criou as palavras mito e mitologia. As palavras de origem gregas mythos e logos deram origem à palavra Mitologia. Mitos são narrações antigas e contos antigos, enquanto logos tem haver com o conhecimento, estudo, razão, ordem. Mitologia pode ser o estudo do conjunto de mitos. Mitos são histórias que buscam explicar a vida e o universo a partir de um mundo “sobrenatural”. As culturas ao longo da história humana desenvolveram mitologias próprias para explicar o mundo “natural” e “sobrenatural”. Costuma-se atribuir imaginação e instinto criativo às mitologias. Mas elas também são ordens morais e espirituais de povos do passado e do presente.

Em sentido amplo, jogadores de futebol e cantores famosos são considerados mito. Em sentido restrito, mitos são diversas narrativas de povos e tribos na tentativa de explicar o mundo metafísico (de deuses e dos mortos), o mundo físico e a interação deles. Como o animismo, cada tribo ou povo tinha sua mitologia. Os mitos foram o primeiro pensamento elaborado pelo homem. Eles buscavam explicar a estrutura do seu universo e o funcionamento. Todas as tribos tinham seu próprio mito que dava explicações de acordo com seu habitat. Eles já tratavam da questão existencial e explicavam o seu mundo com base em um mundo metafísico. Impõem uma ordem no caos, definem culturas, codificam seus valores e estão na base das religiões. Tratam dos mesmos temas em todas as culturas: um mundo físico em interação com outro metafísico, a criação do mundo e do homem, o fim do mundo, objetos sagrados, o herói, as forças da natureza, o anti-herói e o lado negro da força. Ou como diria Raulzito: o início, o fim e o meio.

O mito sumério da criação foi o primeiro a ser escrito (em cuneiforme, pois não existia o alfabeto). A suméria desenvolveu a escrita cuneiforme e isto permitiu o primeiro registro de uma mitologia, datando 2100 aC. A epopeia de Gilgamesh narra a história do primeiro herói registrado que busca a imortalidade. Esta literatura sobrevivente é a mais antiga registrada. O panteão de deuses sumérios ficou preservado em estatuas, entalhes e textos antigos. A cosmologia suméria tem o deus criador Namu que criou a si mesmo. Este ato gerou também Anu, deus do céu, Antu, deusa da Terra e Zuri, deus do equilíbrio entre as dimensões. A junção de Anu e Antu produziu Enlil, deus dos ventos. Este virou líder do panteão dos deuses, mas foi exilado para Dilmum (a morada dos deuses) por violentar Ninlil. Esta deusa teve o filho Nana, o deus da lua. Como no anismo, a lua, a terra, os ventos são espíritos-deuses. Apesar da diversidade de deuses, existe um Deus Criador.

Civilizações mesopotâmicas posteriores compartilharam a mitologia suméria, ora acrescentando, ora descartando deuses sumérios.  A Mesopotâmia elaborou narrativas na tentativa de explicar o universo. Igualmente a todas as narrativas mitológicas, estas narrativas tratam de uma interação do mundo físico com um mundo metafísico. Deuses vaidosos norteavam os governantes, cujas vontades eram interpretadas por sacerdotes. Tais deuses não existiam fisicamente, mas eram glorificados pelos humanos. Este fato influenciou diversas cosmogonias, como a egípcia, a grega, a romana e a semita. Desta última, originou a mitologia hebraica, a qual o Ocidente adotou. Não por acaso nas teologias suméria e cristã o mundo teve a criação em seis dias, o dilúvio, leis em pedra e arca. São plágios mitológicos.

Na Grécia antiga, cada cidade-estado tinha um mito similar a esta mitologia suméria. A divindade mais popular foi Gaia, a mãe terra e primeira deusa grega. Ela estava em forma de mineral, certamente oriundo animismo. Ela era inerte e sua primeira criação foi Urano, deus do céu. Com base no pensamento biológico, eles produziram 12 filhos deusinhos. Entre eles, a deusa Têmis (a deusa da justiça), popular símbolo do mundo jurídico que consiste de uma mulher com os olhos vendados, segurando uma espada. A venda nos olhos simboliza a imparcialidade, enquanto a espada simboliza a força da deusa e da justiça. No presente, esta deusa Têmis simboliza a ordem.  No passado, esta deusa era a própria ordem do universo.

Ainda entre os filhos dos deuses fundadores da mitologia grega, temos o casal de irmãos Cronos e Reia que tiveram uma prole de 6 filhos, entre eles Zeus (céu), Poseidon (mar), Hades (submundo). Apesar de caracterizar crime de incesto na atualidade, o casamento de irmãos valia para as mitologias gregas. Zeus era o deus supremo dos céus, pai dos deuses e dos homens e comandava o Monte Olimpo. Era tão pop que inspirou a mitologia romana e seu correspondente romano era Júpiter. Os deuses do Olimpo eram 12 e tinham personalidade humana com os mesmos desejos e caprichos.  Para satisfazê-los, promoveram disputas e rivalidades. Este universo mitológico grego era imaterial e com forte inspiração na vida humana. Mais uma vez a história narra um mundo físico em interação com um mundo metafísico.

Roma subjugou a Grécia e apropriou de muitos destes mitos gregos, alinhando muito de seus próprios deuses aos correspondentes gregos. Como Baco (romano) e Dionísio (grego), deuses do vinho. Veja que as mitologias sempre associam algo físico, como o vinho, a uma entidade metafísica, como Baco e Dionísio. Esta fusão de diferentes doutrinas ou entidades religiosas existe na atualidade e é chamada de sincretismo. O exército romano subjugou várias tribos e a cultura romana se encarregou que expandir sua língua latina e promover o sincretismo mitológico.

Ainda na Europa, os mitos celtas e nórdicos só foram registrados na idade média. Tais mitos anteriores aos cristãos só puderam ser registrados com a escrita dos cristãos. Estes dominaram a língua latina escrita ainda no império romano. Apesar da resistência da igreja no afã de impor sua mitologia, foram autores cristãos que escreveram os mitos pagãos celtas. Então, a igreja não valorizou devidamente a importância da cultura celta, perdendo o significado original e ficaram como contos folclóricos. Os celtas povoaram a Irlanda e tinham a deusa Brigid. O sincretismo cristão transformou a muito popular deusa irlandesa Brígida em Santa Brígida. Panteão céltico tem as seguintes divindades principais: Dagda, Pai; Oengus, deus do amor, vive periodicamente na forma de um cisne; Lug, deus e luz do sol, é representado por um corvo; Cernunnos, deus subterrâneo, é representado com um chifre na cabeça; Diancecht, deus da medicina. Este, em tempos de guerra, usa uma fonte de saúde com a qual ele cura os feridos. Em sintonia, sempre uma entidade imaterial conectada ao mundo material.

Nas Américas, os índios tinham mitologias próprias e diferenciadas, pois eram separados das civilizações europeias pelo Atlântico. Suas tribos surgiram há milênios e seus mitos e lendas daquela época influenciaram as civilizações posteriores como a maia, a asteca e a inca. Na América do Sul, os incas desenvolveram sua mitologia nos séculos XII-XVI dC. Com a chegada do europeu no século XV, a ocidentalização e a conversão ao cristianismo forçada, houve a erradicação de quase todos mitos e da cultura inca. Os índios da América do Norte também possuíam uma mitologia diversificada. Os índios americanos não usavam linguagem escrita. Mas os maias e os astecas desenvolveram sistemas de hieróglifo que lhes permitiram registrar seus mitos. Em geral, os povos americanos acreditavam numa divindade criadora. Outros temas recorrentes era o herói, o submundo, a rivalidade entre o sol e a lua, o fim do mundo.

Os mitos americanos envolviam um grande espírito criador de tudo e de todos, entrelaçava os mundos natural e espiritual, atribuindo qualidades divinas aos animais, ao céu e a terra. Os índios brasileiros também têm sua própria mitologia. O deus mais conhecido é Tupã, o “Espírito do Trovão” é versão do criador da vida dos índios brasileiros. Ele criou o mar, céu e terra e também ajudou o povo indígena a plantar, fazer artesanato e caçar. Jaci, a deusa filha de Tupã, representa a noite e vigia o luar. Ela é responsável pela reprodução. Guaraci, marido de Jaci, ajudou Tupã a criar a terra. Ele é o deus do sol e do fogo.

O Egito enfatizou a criação da ordem a partir do caos. Esta região da África ficou conhecida pelos manuscritos em hieróglifos. Os textos egípcios têm dezenas de milhares de deuses. Os deuses podiam dividir ou aglutinar com outros. O faraó Akhenaton tentou racionalizar a confusa superposição de divindades e concentrar toda adoração em Aton (deus criador, deus Sol-Rá, Atoun-Rá), representado pelo sol, tido como único criador e mantenedor do mundo. Isis, irmã e mulher de Osíris (governador do submundo), era deusa do casamento, fertilidade e da magia. O Egito também tinha uma trindade forte de deuses.

Quanto ao resto da África, as mitologias eram variadas e de tradição oral, registrada por antropólogos ao longo do século XIX. Tais mitologias, como as religiões em geral, não se importam ambiguidades e contradições. A narrativa delas pode sido oriunda em parte por outras culturas e deuses, adaptando-as a sua cultura. Também em comum eram os xamãs, uma espécie de líder espiritual que entra em transe, um estado parecido com o sonho, para exercer seus poderes de curar, chover, caçar. Muitos deuses africanos foram exportados para as américas por causa da colonização. Assim, temos vários deuses africanos no Brasil: Olodumare ou Olorum, deus supremo de que tudo emana; Xangô, deus do trovão; Iemanjá, rainha do mar, mãe dos deuses e dos homens; Oxalá, criador dos seres humanos; Iansã-Obá-Oxum, divindades femininas; Exu, deus enganador e brincalhão; Ogum, metalurgia e a guerra, entre outros.

Da mesma forma na Oceania, nativos aborígenes de centenas tribos cultuavam narrativas de  criação do mundo, onde seres espirituais e sobrenaturais desenvolveram seus cenários. Na Polinésia, o deus Ta’aroa veio de uma concha. Como muitos deuses africanos, há também o deus trapaceiro Maui, cultuado em muitos mitos da Polinésia. De tradição oral, eles foram registrados pelos antropólogos no século XIX. Vejam a profundidade de um provérbio atribuído ao povo aborígene: “somos todos visitantes deste tempo e lugar. Estamos de passagem. Nosso propósito aqui é observar, aprender, crescer, amar e então voltar para casa.” A interpretação metafórica de “casa” significa um mundo metafísico.

Na Ásia, a mitologia chinesa misturou com o confucionismo, o taoísmo e o budismo. Desta mescla originou as religiões chinesas. Tais doutrinas influenciaram toda a Ásia como Japão, Coreia e Índia. Tema recorrente nestas mitologias, a busca pelo equilíbrio entre as duas forças Yin e Yang vale tanto para a terra, o mundo físico, como para o céu, o mundo metafísico. O dualismo cósmico promove outros dualismos contraditórios como o dualismo do bem e do mal. Este dualismo resultou em deidades contrárias percebidas nas teologias cristãs, onde a deidade opositora de Deus é um tal de Satã.

Em síntese, algumas mitologias podem até serem originais, mas acabam influenciando outras que adaptam narrativas e personagens daquelas. Então, muitos deuses são similares entre os povos. O deus criador é muito comum entre eles. Vale dizer, uma entidade metafísica “cria” o mundo físico com um ato de vontade. Igualmente, outros deuses metafísicos são sempre associados ao mundo físico.

Esta mistura de dois mundos, o físico e extrafísico, criada pelos animistas e pelas mitologias de tradição oral, foram apropriados pelas religiões, agora pautadas em codificações e escrituras sagradas. Elas assumiram o poder espiritual e promoveram uma hierarquia sacerdotal, porta-vozes divinos, sem procuração para exercer o poder mundano a serviço do poder divino. O mundo metafísico religioso, percebido facilmente ao longo da história, é um mundo fixo, dotada de dogmas e, por isto, sem muita reflexão e sem estudo aprofundado. A ciência convencional sempre negou a metafísica. A Parapsicologia, ainda incipiente, registra vários fenômenos de relação entre os dois mundos.

Mito e religião se confundem. Como asseverou o pensador Ernst Cassirer, em sua obra Antropologia Filosófica: “No desenvolvimento da cultura humana, não podemos fixar um ponto onde termina o mito e a religião começa. Em todo curso de sua história, a religião permanece indissoluvelmente ligada a elementos míticos e repassada deles”. Vale salientar, cada religião criou seu mito ou o adotou de outra cultura com a mesma temática. Logo, há diversas religiões explicando os mesmos temas, como a criação da vida e do mundo. Ao contrário da ciência e da filosofia, o mito e as religiões não se importam com contradições, com o fabuloso e nem com o incompreensível, pois vêm de uma narrativa sobrenatural de uma autoridade religiosa. Hoje para o pensamento crítico, são teologias infantis, porém têm sua moral e sua verdade. No passado, tiveram relevância pedagógica.

No início da existência humana, o homem não tinha explicação para raios e trovões. Os fenômenos da natureza causavam medo e surgiram explicações fantasiosas para acomodar o homem. Aparecem várias mitologias em todos os povos que explicam a criação da vida e do mundo para confortar e controlar o ser humano. Ainda hoje, o mito funciona com pais que tentam controlar seus filhos para fazer ou deixar de fazer alguma coisa com ameaças de bicho-papão, saci-pererê, entre outros. O ato de adoração seguia o que não se compreendia e temia. Fogo, relâmpagos, trovões e tempestades passam a ter divindades. Em regra, os deuses eram antropomórficos, tinham necessidades humanas e precisavam de sacrifícios. Vidas e bens eram oferecidos em rituais de adoração.

Todas tribos e cidades-estados adotavam um panteão de deuses. Divindades mitológicas governavam egípcios, gregos, romanos e semitas. Do conjunto de deuses semitas, a tribo hebraica fez uma reforma política e religiosa e, por decreto e numa canetada, passou a ter apenas um deus. O monoteísmo caminhava paralelo com o politeísmo. Jeová e Alá sedimentaram a ideia de um deus único, construtor do Universo.

As religiões, geralmente, têm o mesmo tema: um criador, uma hierarquia transcendental e/ou mitológica, outra hierarquia humana e uma doutrina. Os sacerdotes, detentores de uma escritura sagrada revelada pelo próprio criador, pregam uma doutrina, rituais e um código de conduta do crente. Inicialmente, as religiões abarcavam todo conhecimento humano. As artes, a economia, o direito, a nutrição, a sociologia, enfim, todo conhecimento estava em seus ensinamentos, códigos de conduta e seus livros escritos. Com o tempo, tais conhecimentos ganharam autonomia.

Enquanto o animismo pregava uma ordem local, religiões monoteístas buscavam pregar uma ordem universal. O animismo é de seres imateriais locais e não deuses universais das religiões. Animismo não é uma religião específica, mas gênero de milhares de religiões, cultos e crenças diferentes. Enquanto o teísmo é a visão de uma ordem universal, o animismo é uma ordem local. Como tais entidades não existem fisicamente, não possuem substância e nem tempo-espaço, são seres metafísicos.

As religiões e suas teologias pregam o Absoluto, o Criador de tudo e de todos. No entanto, em torno desta ideia do Absoluto, as religiões inundaram de outras ideias infantis e as tornaram absolutas também. Principalmente os mitos. A ideia do absoluto em tudo não permitiu as religiões evoluírem. Filosofia, política, arte e ciência saíram das religiões, negaram seus mitos e relativizaram o conhecimento.

A teologia cristã tem cerca de dois milênios de existência, abarcou todo conhecimento, mas não evoluí. Esta síndrome de Peter Pan atrapalhou o pensamento teológico e levou várias searas do conhecimento a criticar o pensamento religioso.  A filosofia foi a primeira a abandonar do pensamento religioso há mais de dois milênios. Depois a política e a outras áreas da sabedoria, mas ainda assim a religião ainda tenta um diálogo com elas. A saída da política permitiu até o Estado ateu, sem religião oficial.

A infantil mitologia hebraica alimentou a teologia ocidental e a teologia islâmica. O número de judeus no mundo é inexpressivo, mas os cristãos e mulçumanos somam mais da metade do planeta. Vale dizer, mais da metade da população mundial acredita na mitologia hebraica, criada por uma tribo de hebreus para doutrinar seu povo local. Uma crença localizada no tempo e no espaço, mas que rompeu com tais barreiras. Isto representa um atraso teológico de mais de dois mil anos.

Estas religiões acreditam terem tido a revelação do Criador e que realizam a verdadeira vontade divina. Para isto, mataram, torturam e guerrearam em nome de seu deus. As duas são dominadas pelo exclusivismo e fundamentalismo, como os judeus extremistas do passado e do presente. Os mulçumanos consideram o Corão como a própria palavra de Alá e não a de Maomé. Da mesma forma, os cristãos que vêm na Bíblia a palavra de Deus.

A mitologia hebraica prega a aliança de Jeová com o povo judeu. Tal conchavo político-religioso levou as duas maiores religiões da humanidade a eternizarem a exclusão. Este exclusivismo religioso não permite uma solução, pois as religiões contêm dogmas absolutos, oriundos do próprio Deus. Tal impasse só seria solucionado com a submissão de toda humanidade a uma única religião fundamentalista e seus dogmas.

O povo hebreu inovou com o monoteísmo. O judaísmo influenciou o islamismo e o cristianismo. Eles têm um princípio em comum: a origem única, a existência de um Criador de tudo e de todos. Deus, Alá, Jeová, não importa o nome, mas sempre um Ser superior. As instituições humanas do pretérito e do presente têm uma visão mitológica de Deus, como a tribo hebraica do passado. A civilização ocidental ainda tem o demérito de não criar sua própria mitologia.

Cada religião, cada homem tem uma ideia do seu Criador. As culturas têm seu deus (es) antropomórfico (s) que interagem com os homens. Tais mitologias têm um enredo digno de novela com brigas, ciúmes e crimes passionais, entre homens e deuses. Os deuses pareciam humanos e alguns foram extintos pelo desuso ou por decreto. Para os hebreus, sobrou apenas o guerreiro Javé, o Deus da Bíblia. Ele é produto de fatos históricos, políticos e mitológicos.

A mitologia cananeia corresponde aos habitantes do reino antigo de Canaã, situado no Oriente Médio, onde hoje está o território de Israel. Ela foi descoberta a partir de 1928, como resultado de escavações arqueológicas em Ugarit, na Síria. Sua mitologia misturava cultura própria e da cultura mesopotâmica, ainda com deuses representantes das forças naturais. O principal deus cananeu era EL, personagem fundamental da mitologia cananeia, o criador dos homens e dos deuses. No elenco dos deuses, ainda havia sua esposa Asherah, deusa da vegetação e da fertilidade; a filha Anat deusa do amor; os inimigos Yam, deus do Mar; e Mot, deus da morte. Neste panteão de deuses, o guerreiro Javé infiltrará e se tornará único.

Arqueólogos e linguistas localizaram Javé antes da Bíblia ser escrita. Ele não era um deus grandioso, mas apenas um deus guerreiro entre outros deuses. Ele era cultuado por nômades do deserto em contatos com os hebreus. Quiçá estes nômades pregavam a doutrina do zoroastrismo, considerada primeira religião monoteísta fundada na antiga Pérsia. Historiadores da religião asseveram que doutrinas de Zoroastro, como a crença no paraíso, na ressurreição, no juízo final e na vinda de um messias, viriam a influenciar o judaísmo e, por sua vez, influenciar o cristianismo e o islamismo.

Javé incorporou ao conjunto de deuses cananeus. Ele tinha personalidade forte e foi ganhando lugar na mitologia israelita. Os deuses cananeus perdem a guerra contra Javé. Ele destrói o deus maior EL, herda o trono e se casa com a deusa viúva Asherah. Alguns acreditam que Javé e EL eram  o mesmo deus e não distintos. Na própria Bíblia, Deus é chamado de EL (Genesis 33:20).

Josias, rei de Judá, reinou por 31 anos, até por volta do ano 609 a.C. Politicamente ele instituiu grandes reformas. Estudiosos asseveram que este rei determinou a codificação das Escrituras Hebraicas, durante a reforma deuteronômica em seu governo. Acreditam que tal medida foi política para unificar Judá frente aos inimigos, transformando Javé no único deus e destruindo altares das outras divindades como EL. Josias acaba com o politeísmo, numa canetada, implanta o monoteísmo e acaba por influenciar todo Ocidente e todo o mundo islã por milênios. 

Indícios de politeísmo são encontrados na Bíblia. O próprio Javé afirma a existência de outros deuses ao proibir a adoração de outros deuses no Decálogo. Se Javé proibiu é porque existiam outros deuses. Com o Novo Testamento, Jeová perde o papel central da narrativa para Jesus. Também deixa de ser o guerreiro cruel e fica mais bonzinho.

As teologias infantis levaram todos os campos do conhecimento a se libertarem das religiões. A filosofia afirmava que as religiões representavam o Criador por meio de projeção dos defeitos humanos. A história, a arqueologia, a filologia, a mitologia não vêm os livros sagrados como divinos e nem mesmo revelações divinas e sim uma colcha de retalhos, onde culturas antigas fornecem fragmentos para culturas em formação.  As artes pegaram carona na onda de libertação e tiveram sua autonomia. A geologia afirmou que a terra tem milhões anos de existência. Já a Astrofísica data de bilhões de anos de existência da Terra e do universo. Teólogos biblistas pregavam poucos milhares de anos de existência da vida e do mundo, através da contagem das gerações dos patriarcas bíblicos. A física e a astronomia tiraram a Terra do centro do universo bíblico. A biologia tirou a criação especial do homem e inovou com o evolucionismo. A arte saiu das religiões, mas as religiões não saíram da arte. As religiões adotam arte sacra como forma de hipnotizar os crentes, mas a arte profana se diverte com a infantilidade teológica.

Sacerdotes religiosos acreditavam que possuíam a verdade e que as outras religiões eram uma ameaça. Quando surgiu a igreja, separada das sinagogas, criaram-se os antissemitas e anticristãos. As religiões promovem separações dos homens. No entanto, o cerne das religiões, credo em um deus (ou deuses) e na imortalidade da alma, é o mesmo de sempre. Devido ao excesso de orgulho e ao exclusivismo, elas passam a divergir em outros pontos.

O Direito, como a ciência, demonstra fenômenos naturais de leis que as religiões insistem em dizer a participação direta e imediata do Criador. Mandamentos, como não matarás e não furtarás, ocorria naturalmente entre os homens da caverna e de qualquer tribo posterior, sob pena de não existência social. Como um tribal iria dormir com a possibilidade de outro o matar ou furtar sua lança. Estas proibições eram leis sociais e naturais em todas as tribos e cavernas, sem necessidade de Deus escrever em uma pedra. Elas deviam preocupar com a manifestação divina pelos processos naturais e não pelo imediatismo divino. Devem considerar o Criador em termos de causa primeira. Por isto, as ciências questionam as teologias infantis e negam que a Bíblia seja a palavra de Deus.

A ciência costuma atribuir origem universal do animismo ao medo. Mas ateus e cientistas materialistas também têm medo e nem por isto são religiosos. Também costumam atribuir o espiritualismo humano a alucinações, a transes, mas estes diagnósticos são abstrações, não podem ser localizados no cérebro, pois envolvem a consciência, algo igualmente metafísico. Atribuir um fenômeno universal a erro, parece ignorar algo universal.

Em síntese, o animismo e a mitologia têm em sua essência a interação do mundo físico com o metafísico. Apesar de ser uma salada de culturas, a mitologia hebraica triunfou e espalhou pelo mundo. De forma similar, tal mitologia é também uma interação entre os mundo físico e metafísico. Modernamente, 3 religiões pregam a mitologia hebraica e duas delas, o cristianismo e o islamismo, doutrinam mais da metade da população mundial.

 

 

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